Embarcamos em Santos junto à Barraca, Teatro Cinearte, rumo á Ilha de Sacalina.
A Maria do Céu Guerra e o Helder Costa até me ofereceram a viagem. Gente boa!
Viagem tramada e muito agitada. Com saltos constantes na carruagem, o resfolgar dos cavalos, ruído contínuo da chuva a cair sem parar, trovoadas e mar agitado quando fomos lançados á água na barcaça que nos levou a Sacalina.
Só aquele som contínuo da chuva a cair quase nos deixava os corpos encharcados. Ao medico Anton Tchekov valia-lhe o guarda-chuva preto na mão.
Lá chegamos.
A ilha dos deportados onde tudo era diferente, um diferente pior que tudo o resto o que a Rússia tinha mas que, infelicidade minha, muitas vezes me fez lembrar o já visto, ..., sobretudo o já tantas vezes por mim desejado "não quero mais voltar a ver isto ! "
Já em palco, ofereceram-nos um outro espectáculo, levaram-nos ao teatro, ver um pedido de casamento. Ou o como as opiniões mudam num repente quando as promessas são de casório. A solidão, dizem, é coisa tramada, as donzelas sabem como fugir dela, há quem o diga.
Sacalina !
Ilha de deportados, de justiça á moda dos que pelo populismo querem nestes tempos virar a Europa numa Sacalina gigante com métodos já antes ensaiados e levados à cena pelo fascismo.
A justiça das chibatadas. Trinta pelo chefe do posto, cinquenta pelo intendente e cem pelo governador. Tudo com regras, com peso, muito peso, e medida. Pela medida grande!
Mas, ali aprendi também coisas de partilha, de amor pelos outros, envolvendo carcereiros e encarcerados.
Barcos que vão chegando com gente que matou gente no desespero do momento, gente que não matou gente mas disseram que o havia feito. É o quanto baste. Mulheres que não se incluem nessas gentes pois apenas virão com elas para trabalhar em casa, nas terras e para o todo o serviço dos senhores importantes, que os há já entre os deportados condenados, a ver o judeu que agora trafica com os haveres dos outros que os vão roubando aos que chegam incautos e os perdem ao jogo ou acordam mortos, sem haveres, à beira do rio.
Sacalina das mulheres que sobram da apresentação aos senhores, quando chegam, e por não terem sido escolhidas, as mais bonitas metem-se sempre à frente, vão para o serviço público, entenda-se haviar fregueses pelas ruas e onde haja quem delas se queira servir.
Sacalina da prostituição. Sacalina dos trinta e poucos ali nascidos. Os outros foram sendo dizimados pela varíola, pelas febres, má nutrição com falta de legumes e muita gordura para combater o frio siberiano.
Sacalina visitada e catalogada, nas gentes, nas doenças, no modo de vida, na demografia e no de que real a ela vem colado, a miséria das gentes, pelo médico Ivanov Tchekov. Ontém, chamavam-lhe Ruben Garcia e bem mereceu que o nomeassem assim.
Mas também Samuel Moura, Maria do Céu Guerra, João Maria Pinto, Sergio Morais, Sonia Barradas, Claudio Castro, Rita Soares, Adérito Lopes, Paulo Lima, David e Carolina Medeiros, Patricia Frazão, Miguel Migueis ... Fernando Belo e Paulo Vargues na sonoplastia e iluminação, respectivamente.
Andei intrigado durante toda aquela viagem acerca da senhora do cãozinho no Teatro de Tomsk. O rosto, as feições, os cabelos loiros , os olhos e tudo o resto que dela fazia gente presente no meio daquele espaço, era coisa que só poderia ser mesmo de Sacalina, de Moscovo, das Russias, da Ucrânia ou da Polonia. Real demais para ser de Santos. Pois era Kateryna Patreanu, a tal senhora do cãozinho. E que bem que ela ia ...!
Frequentemente, aquilo para que os meus sentidos deveriam mesmo ficar alerta, era realçado pelas peças de piano magistralmente interpretadas e criadas pelo Maestro.
E, nesta viagem, o Maestro, não era um qualquer.
Antonio Vitorino D'Almeida, ele mesmo, companheiro desta noitada e desta viagem magistralmente dirigida pela grande Amiga Maria do Céu Guerra.
No regresso, já na rua, em Santos, fui ainda verificar se já haviam iniciado as obras da estátua merecida à Barraca, à Maria do Céu e ao Helder Costa, coisa de há muito justificada pelo muito que estes Bons Malandros fazem pelo bom teatro que se vai podendo ver por este petit morceau de terras lusas.
Despedi-me dos companheiros de viagem com um beijo amigo à Maria do Céu Guerra e votos de muitas felicidades e sucesso ao grupo de quatro estagiários do Teatro A Barraca que esta noite completou o elenco.
Carlos Pereira Martins.
Consumidor de bom Teatro