sexta-feira, 5 de janeiro de 2018
Viagem madrugadora
“Vá, toca a levantar que hoje é preciso madrugar”.
Ao acordar apressado e sonolento segue-se o ritual dos outros dias, apenas diferente nas épocas de férias em que a pressa dá lugar ao arrastar de procedimentos vários que vão do esfregar os olhos á saída da cama até á posição de “pronto” frente ao lavatório, já de escova de dentes em punho.
Diferente, neste dia em que é preciso madrugar para viajar para fora da cidade, é mesmo a luz do dia que não entra ainda pela janela . É ainda noite.
A partir de aqui, tudo se torna igual. Já só falta pentear. Olha que o teu leite já está quente. Olha que o teu pequeno almoço já está na mesa. Despacha-te que o teu pai já tem o carro a aquecer. Leva o teu boné. As luvas, está muito frio a esta hora, não levas as luvas?
Agora, com dois carros da Corji Toys no bolso, já vou descendo a escada até á garagem.
Continua sem se ver uma restea de sol. É mesmo noite, ainda.
Estranho, estranho é o ambiente das primeiras ruas percorridas onde tudo o que nos outros dias aparece como imagem armazenada e bem conhecida, vinda desses dias sem conta sempre repetidos, á mesma hora, com a mesma luz, os mesmos ruidos, se mostra hoje completamente diferente. Nem diria que são as mesmas ruas, os mesmos locais, a mesma cidade, o mesmo ritual feito, apenas, a hora diferente.
Agora é a rua da minha escola, tudo tão sossegado. Ainda não se vê viva alma. De aqui a duas horas, posso adivinhar o que aqui se passará, quem chega, como chega, o que veste, quase até o que dirá e fará até entrar para a sala de aulas logo após o toque da campainha. Agora, ninguém diria da animação que tudo isto terá de aqui a umas horas !
Ás ruas, ao ar, a todo o percurso que já percorri a esta hora madrugadora, ainda noite, apanho-lhes o cheiro, sinto-lhes o cheiro que é o mesmo das vezes em que viajo tão cedo.
É como se o ser cedo tivesse um cheiro próprio que, só por si definisse o ser cedo.
Como se, com este cheiro madrugador, não fosse preciso que me dissessem que em vez das nove horas dos outros “todos os dias” , sejam ainda e apenas sete horas menos um quarto.
Agora, já nos arredores da cidade, zonas de bairros, de menos lojas comerciais e mais casas de dormir, os primeiros movimentos são dos padeiros e, ainda antes , o leiteiro.
Ainda há leiteiros na minha cidade e, sobretudo, nas casas e nos bairros que ficam logo á entrada dela.
A brincar, há quem diga que qualquer dia deixará de haver o leiteiro, o padeiro, o homem da gaita de beiços que passa com um guarda chuva aberto, mesmo no verão nos dias de sol, a perguntar se querem afiar facas, tesouras ou navalhas. Ás vezes também coloca pingos de solda em tachos, panelas ou cafeteiras. E também compõe guarda chuvas estragados pelo vento nos dias de temporal. Só precisa de duas varetas? Então, vale a pena arranjar. Fá-lo ali mesmo, é só o tempo de voltar para dentro de casa, ir dando mais uma ou outra volta á lide diária que agora começou e fica pronto.
Voltando á viagem, vamos cinco pessoas apertadinhas no carro do meu pai. Os dois á frente vão bem, os assentos são individuais, um para cada, sem apertos. Mas, cá atrás, temos que nos apertar. Ainda para mais com esta minha samarra que me tolhe os movimentos e toma muito mais espaço.
Uma samarra é um casaco de tecido grosso, quente, para os dias de frio, com uma gola também ela muito quente e aconchegada, feita de pele de raposa. Há quem, á falta da raposa ou de algibeira mais recheada, as faça com pele de coelho. Também são quentinhas. Muitos dos meus colegas de escola usam samarras no inverno. Por estas terras beirãs não se brinca com o frio. A ver pela geada que ainda se nota na estrada! E, esta manhã, antes de sair de casa, para me lavar, não fora a minha mãe ter tido o cuidado de retirar água, na noite anterior, para uns recipientes que tem mesmo para estes dias frios, e a que saía da canalização não aquecia sequer. Vinha ainda quase congelada. Ás vezes congela mesmo e não sai um pingo.
Está quase a raiar o dia.
É divertido quando algum coelho salta de uma berma da estrada para a outra, em rápida corrida, parece um atleta. Na escola já aprendi que os coelhos não correm. Saltam. Dão saltos repetidos facilitados pelas patas posteriores serem muito mais compridas que as da dianteira.
Interesso-me muito por estas coisa da natureza, gosto das ciências naturais que damos na escola.
Mas gostava de entender muito mais sobre tudo o que a natureza nos dá, nos mostra e nos faz.
Se quando corto um dedo, o golpe volta a colar e passado pouco tempo a pele volta a crescer, quando tenho a barriga inflamada o sangue vem em maior quantidade do resto do corpo para combater a infecção e quando à noite preciso de descansar o sol se põe e o escuro vem para me facilitar o sono, porque é que tudo isto acontece?
Talvez haja quem saiba. Gostava de aprender como tudo sito se passa. Para mim, entendo que a a natureza tem sempre uma intenção, seja a preservação das espécies ,como aprendi nas ciências, o equilibrio de tudo na Terra e no Universo ou o que seja mas que não encontrei ainda a resposta.
Mas que a Natureza tem um intenção, tem.
Talvez seja a intenção o que criou tudo, o que vemos e somos.
Olha, chegamos, finalmente.
E agora, já dia, o cheiro madrugador, diferente, desapareceu.
Este ar, este respirar e este cheiro, já eu conheço. É o mesmo de todos os dias.
E, o sitio também já o reconheço.
Já cá vim mais vezes !
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